quarta-feira, setembro 10, 2008

Textos Humorísticos

Trabalhar com textos humorísticos em sala de aula pode ter várias utilidades: 1) atrair o interesse dos alunos para a aula, já que serão utilizados materiais que muito provavelmente eles gostarão de ler; 2) refletir sobre os juízos de valor, os preconceitos, enfim, os problemas da sociedade, que, muitas vezes, servem de base para a construção desses textos; 3) chamar a atenção para os aspectos lingüísticos que ajudam a provocar o efeito de humor. Com relação a isto, em “Aprendendo a escrever (re) escrevendo”, Possenti destaca alguns dos mecanismos explorados por esse tipo de material (brincadeiras com a ortografia, com as variedades lingüísticas, entre outros) e recomenda o uso desses materiais em sala de aula com o objetivo de explicitar os recursos lingüísticos que eles utilizam, de esclarecer em que situações eles ocorrem e até mesmo para mostrar alguns problemas do nosso sistema de escrita e tentar entender porque eles acontecem. Com base nisto, observemos, então, a seguinte piada.

No guichê da Rodoviária de São Paulo, o português presta atenção na forma como o brasileiro que está na sua frente pede uma passagem ao vendedor:
- Aparecida, ida.
Finalmente, chega a vez de o português pedir a sua passagem. Resoluto, certo de que aprendeu como deve proceder, ele se dirige ao vendedor:
- Ubatuba, uba.

Nessa piada, explora-se o preconceito de que os portugueses seriam ignorantes. Assim, sem saber como se compra uma passagem rodoviária, ele precisaria prestar a atenção em alguém para aprender como se faz isto. No entanto, quando o brasileiro pede uma passagem de ida para a cidade de Aparecida (“Aparecida, ida”), o que o português entende é que é preciso repetir as três últimas letras da cidade de destino e, por isso, diz “Ubatuba, uba”. Com efeito, são freqüentes as piadas que exploram algum tipo de
preconceito:

Na escola, a professora manda um aluno dizer um verbo qualquer e ele responde: Bicicreta. A professora, então, corrige: - Não é “bicicreta”, é “bicicleta”. E “bicicleta” não é verbo. Ela tenta com outro aluno: Diga um verbo! Ele arrisca: Prástico. A professora, outra vez, faz a correção: - Não é “prástico”, é “plástico”. E “plástico” não é verbo. A professora faz a sua última tentativa e escolhe um terceiro aluno: Fale um verbo qualquer! - Hospedar. A professora comemora: - Muito bem! Agora, forme uma frase com esse verbo. – Os pedar da bicicreta é de prástico.
Muito provavelmente, a piada chamará a atenção dos alunos e eles a acharão engraçada. Entretanto, o que produz este efeito de humor?
Marcos Bagno, em sua obra A língua de Eulália (Editora Contexto, 1997), discute situações parecidas com a explorada na piada acima, em que o simples fato de alguém falar diferente (com relação à fala culta) soa engraçado, servindo como motivo de piada. No livro (trata-se de uma novela sociolingüística), o lingüista constrói uma personagem, Eulália, que fala “semelhante” ao modo apresentado na piada (semelhante, não idêntico, pois as piadas baseiam-se em estereótipos, nunca em representações lingüísticas fiéis à realidade).
No entanto, Bagno mostra que, de engraçado, a fala de Eulália não tem nada. Utilizando como exemplo os “erros” encontrados na piada exposta acima, podemos fazer uma analogia com os exemplos dados pelo lingüista e descobrir que quem fala “bicicreta” e “prástico”, na verdade, segue uma tendência natural da língua: trocar o “l” pelo “r” em encontros consonantais. Para comprovar isto, o lingüista apresenta trechos da obra de Camões, José de Alencar e de Machado de Assis que contêm exemplos desse fenômeno (denominado rotacismo), considerado por muitos como coisa de caipira... A piada também serve para deixar claro aos alunos que há construções gramaticais diferentes, mas regulares, como marcar o plural apenas no determinante: “Os pedar da bicicreta é de prástico”.
Na obra citada, Bagno trabalha também este aspecto e explica que esse tipo de construção faz parte da gramática do português não-padrão, que, de acordo com o livro, é a língua falada pela maioria pobre e analfabeta do povo brasileiro, em oposição ao “português padrão”, a língua a que uma pequena parcela da população tem acesso.
O objetivo de um trabalho na escola que discuta a existência do português não-padrão é explicar os erros dos alunos, o que implica, nas palavras de Bagno, “que o português não-padrão deixe de ser visto como uma língua ‘errada’ falada por pessoas intelectualmente ‘inferiores’ e passe a ser encarado como aquilo que ele realmente é: uma língua bem organizada, coerente e funcional”.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito boa as explicações, pautadas nos estudos de Marcos Bagno. Realmente esclarecedor e com conhecimento. Muito bom!

Wilma